terça-feira, 10 de junho de 2014

" Vira-lata, mas sem complexo " - Jason Tércio é Jornalista e Escritor

"Desconfio que o Brasil já não depende de futebol 
para ser feliz ou infeliz de quatro em quatro anos. Ainda bem" 
Jason Tércio é Jornalista e Escritor

   Sou o mais livre dos animais urbanos. Tenho as ruas à minha disposição, durmo em qualquer canto, e, quando algum ser humano resolve me adotar, sou tratado sem frufru, como eu gosto. Mas sou também sensível e vulnerável. Por isso, exijo mais respeito e menos preconceito canino!

   Me refiro a esse tal “complexo de vira-lata”. O Nelson Rodrigues bancou o Freud do Andaraí e inventou isso, tudo bem, foi engraçado, mas agora, por causa da Copa, a expressão foi apoderada por autoridades e aliados para se esquivarem de explicações sobre as falhas e malfeitorias do poder público.

   Os governos torraram uma fortuna e as obras ainda estão incompletas e insatisfatórias? O Brasil já está entre os 15 países com maior número de homicídios no mundo? É potência econômica na América Latina, mas um dos 12 países mais desiguais do planeta e o segundo com mais analfabetismo na América do Sul, só inferior ao da Bolívia? Se você reclamar e citar nações em melhor situação, tem complexo de vira-lata.

   Aí está. Depois do bode expiatório, inventaram o cão expiatório. Mas até eu, com minha modesta inteligência canina, entendo que criticar fracassos, insuficiências e incompetências dos governos é prova de fé na melhoria de um país. Só protesta quem não perdeu a autoconfiança e a capacidade moral de reagir às injustiças. Quem cala, consente que o mundo degringole. Quem grita, acredita em avanços reais, não em discursos ou na boa vontade dos políticos.

   E os senhores governantes parecem ignorar que complexo de vira-lata hoje em dia não passa de um mito, pertence ao museu da História, como rádio de pilha, bolero, chanchada, Grapette, Cadilac, nota de mil cruzeiros, gibi do Zorro, footing, “Repórter Esso”, vestido saco, Maria Fumaça, macaca de auditório, cuba-libre. Era esse o Brasil de 1958, quando Nelson criou a expressão.

   Naquele tempo os vira-latas realmente viviam na pior, mordendo sarna e pulga o dia inteiro, favelados andavam descalços e cheios de pereba, moravam em barracos de zinco e tábua, crianças morriam de fome.

   De lá pra cá tudo mudou. Eu, por exemplo. Vira-lata sim, mas não complexado. Ninguém me olha com pena. Sou bem comportado, não passo fome, não faço caca nas calçadas. Tenho orgulho de minha sub-raça, podem ter certeza. É melhor ser um vira-lata sem o rabo preso, do que ter pedigree e viver com o rabo entre as pernas.

   Por isso, senhores do poder e das redes sociais, faço um apelo: deixem os vira-latas em paz. Não temos nada a ver com suas complicações humanas e desumanas. Na minha turma, quando surge uma briga, nós dizemos: isso é complexo de gente, que ama e odeia ao mesmo tempo.

   Imagino o que acontecerá se o Brasil perder a Copa. Será que o povo vai ficar ganindo e chorando, como os vira-latas de 1950? E se ganhar, as ruas vão ficar lotadas de patrioteiros pitbulls latindo de euforia, como em 1958, 1962, 1970?

   Ouso prever que não vai acontecer nem uma coisa nem outra. Desconfio que o Brasil já não depende de futebol para ser feliz ou infeliz de quatro em quatro anos. Ainda bem. O complexo de vira-lata acabou faz tempo e está mais do que na hora de acabar também o complexo de “melhor do mundo”. Bola pra frente.

   E, antes que eu me esqueça, a melhor frase do Nelson Rodrigues é “toda unanimidade é burra”.



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