"Desconfio
que o Brasil já não depende de futebol
para ser feliz ou infeliz de quatro em
quatro anos. Ainda bem"
Jason Tércio é Jornalista e Escritor
Sou o mais livre dos animais urbanos. Tenho
as ruas à minha disposição, durmo em qualquer canto, e, quando algum ser humano
resolve me adotar, sou tratado sem frufru, como eu gosto. Mas sou também
sensível e vulnerável. Por isso, exijo mais respeito e menos preconceito
canino!
Me refiro a esse tal “complexo de
vira-lata”. O Nelson Rodrigues bancou o Freud do Andaraí e inventou isso, tudo
bem, foi engraçado, mas agora, por causa da Copa, a expressão foi apoderada por
autoridades e aliados para se esquivarem de explicações sobre as falhas e
malfeitorias do poder público.
Os governos torraram uma fortuna e as obras
ainda estão incompletas e insatisfatórias? O Brasil já está entre os 15 países
com maior número de homicídios no mundo? É potência econômica na América
Latina, mas um dos 12 países mais desiguais do planeta e o segundo com mais
analfabetismo na América do Sul, só inferior ao da Bolívia? Se você reclamar e
citar nações em melhor situação, tem complexo de vira-lata.
Aí está. Depois do bode expiatório,
inventaram o cão expiatório. Mas até eu, com minha modesta inteligência canina,
entendo que criticar fracassos, insuficiências e incompetências dos governos é
prova de fé na melhoria de um país. Só protesta quem não perdeu a autoconfiança
e a capacidade moral de reagir às injustiças. Quem cala, consente que o mundo
degringole. Quem grita, acredita em avanços reais, não em discursos ou na boa
vontade dos políticos.
E os senhores governantes parecem ignorar
que complexo de vira-lata hoje em dia não passa de um mito, pertence ao museu
da História, como rádio de pilha, bolero, chanchada, Grapette, Cadilac, nota de
mil cruzeiros, gibi do Zorro, footing, “Repórter Esso”, vestido saco, Maria
Fumaça, macaca de auditório, cuba-libre. Era esse o Brasil de 1958, quando
Nelson criou a expressão.
Naquele tempo os vira-latas realmente viviam
na pior, mordendo sarna e pulga o dia inteiro, favelados andavam descalços e
cheios de pereba, moravam em barracos de zinco e tábua, crianças morriam de
fome.
De lá pra cá tudo mudou. Eu, por exemplo.
Vira-lata sim, mas não complexado. Ninguém me olha com pena. Sou bem
comportado, não passo fome, não faço caca nas calçadas. Tenho orgulho de minha
sub-raça, podem ter certeza. É melhor ser um vira-lata sem o rabo preso, do que
ter pedigree e viver com o rabo entre as pernas.
Por isso, senhores do poder e das redes
sociais, faço um apelo: deixem os vira-latas em paz. Não temos nada a ver com
suas complicações humanas e desumanas. Na minha turma, quando surge uma briga,
nós dizemos: isso é complexo de gente, que ama e odeia ao mesmo tempo.
Imagino o que acontecerá se o Brasil perder
a Copa. Será que o povo vai ficar ganindo e chorando, como os vira-latas de
1950? E se ganhar, as ruas vão ficar lotadas de patrioteiros pitbulls latindo
de euforia, como em 1958, 1962, 1970?
Ouso prever que não vai acontecer nem uma
coisa nem outra. Desconfio que o Brasil já não depende de futebol para ser
feliz ou infeliz de quatro em quatro anos. Ainda bem. O complexo de vira-lata
acabou faz tempo e está mais do que na hora de acabar também o complexo de
“melhor do mundo”. Bola pra frente.
E, antes que eu me esqueça, a melhor frase
do Nelson Rodrigues é “toda unanimidade é burra”.
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